Há um sem número de filmes japones que expressam, direta ou indiretamente, o trauma coletivo que assolou a nação após as tragédias de Nagasaki e Hiroshima. Não é para menos. A maior parte dos países do mundo já entraram em guerra, mas apenas um sofreu ataques da bomba atômica. Em 1984, o contexto social japonês já era o de uma bem sucedida modernização – uma série de medidas sócio-políticas que colocaria o país como um expoente social, econômico e principalmente tecnológico, totalmente integrado com o mundo ocidental.
Não existe necessidade urgente de analisar Nausicaä do Vale do Vento sob uma perspectiva simbólica, pois o filme é um deleite por si só: constrói uma narrativa extremamente envolvente através da articulação de temas como guerra, meio ambiente, ética, heroísmo, etc. Mas se o exercício aqui proposto é observar como o cinema japonês interpreta o próprio trauma com a bomba, e sendo inevitável perceber que Nausicaä é bastante tomado por uma certa dicotomia enquanto se localiza historicamente num período de tardia Guerra Fria, não nos custa descrever os símbolos que regem a história por trás da trama principal.
Os elementos fundamentais da história de Nausicäa são: 1. um mundo distópico, mil anos depois do nosso, parcialmente inadequado para a sobrevivência humana, com uma natureza hostil e venenosa e insetos mutantes aniquiladores; 2. uma lenda dos chamados deuses-soldados, criaturas poderosíssimas e hostis que foram as responsáveis pela destruição do planeta mil anos atrás; 3. duas nações muito poderosas, Torumekia e Pejitei, e uma terceira nação, esta mais modesta, o Vale do Vento; há um quarto elemento referente ao heroísmo, e dele falaremos mais tarde.
Uma análise rápida do ponto de vista da representação poderia facilmente indicar que o fantástico de Nausicaä é motivado pelo temor latente, à época de sua realização (anos 1980), de que uma guerra deflagrada entre Estados Unidos e União Soviética poderia deixar o planeta em condições de vida delicadas, para dizer o mínimo. O deus soldado, com sua fisionomia gigantesca e seu aspecto aterrorizante, é claramente um personagem simbólico para representar a própria bomba atômica, que não destruiu o mundo mil anos atrás, mas avassalou Nagasaki e principalmente Hiroshima em 1945.
Os torumekianos, com uma política intervencionista e militar operada a partir de um discurso messianico, seriam representação dos Estados Unidos da América; os pejitianos poderiam ser tanto a própria União Soviética ou uma representação coletiva de países do Oriente Médio. As relações simbólicas se esmaecem a partir daí, pois é difícil precisar sobre qual seria o símbolo por trás do Vale do Vento. Parece uma nação modesta demais para representar o Japão oitentecista, embora tenha a tradição como questão fundamental na constituição de sua sociedade. Além disso, o Vale do Vento é uma nação extremamente ligada à natureza, cercada de lagos, florestas e por uma oportuna e necessária corrente de vento perpétua.
Seria mais fácil perceber o Vale do Vento como a representação de uma sociedade ideal para Hayao Miyazaki, pois ela se relaciona harmoniosamente com elementos recorrentes na filmografia do diretor: o profundo respeito às águas e florestas, a admiração pelo folclore e pelos animais e, em termos de personagens, pessoas localizadas numa hierarquia não opressiva que subvertem lógicas de poder e formatam uma sobrevivência pautada na colaboração e no respeito.
É interessante apontar esse arcabouço simbólico que pode se esconder por trás da história de Nausicäa pois ele releva espontaneamente as posições ocupadas por cada um dos elementos na narrativa do filme que, por sua vez, se nega a estabelecer essas posições por meio de maniqueísmos baratos. Todo o filme é pautado pela construção sutil nas relações de poder entre as nações e as motivações expressas por cada uma delas. Existem antagonistas na história, mas eles o são pois intentam agir contra a natureza e não necessariamente contra os protagonistas.
Essa característica de intenção é recorrente na filmografia de Myiazaki. Suas animações são formatadas para todos os públicos, inclusive crianças, mas seus antagonistas são munidos de uma certa maturidade nas motivações, o que atenua o desequilibrio que normalmente se vê em uma lógica dicotômica entre heróis e vilões, investindo os filmes de Myiazaki, inclusive Nausicäa, de uma tatibilidade pungente – as coisas da história parecem verdadeiras.
Reconhecer em Nausicäa que os torumakianos não são essencialmente maus, mas estão de um lado equivocado das circunstâncias, nos permite perceber com mais boa vontade as personalidades bem construídas dos dois personagens que os representam na história: Kurotowa, o fiel-infiel líder do exército de Torumeki, e Kushana, a chefe do governo. Observar a variação de tom destes personagens durante a trama de Nausikäa é uma verdadeira aula. Eles percorrem os espaços do cômico, da ameaça, do terror, da traição, da resignação, da obstinação e da entrega com uma naturalidade incrível. A presença do antagonismo em Nausicäa é similar a uma música bem composta: a variação é parte integral da estrutura - não há ritmo com uma nota só.
A presença dos pejitianos é mais tênue nesse sentido, pois eles se mostram personagens muito mais periféricos do que propriamente antagonistas dos nossos heróis. Inicialmente não surgem como ameaça ao equilibrio planetário, mas acabam por se tornarem responsáveis pelo evento que por pouco não destruiu Vale do Vento. Por outro lado, as mulheres de Pejite são diretamente responsáveis pelo resgate de Nausicäa e é aí que queremos chegar.
Miyazaki tem por hábito a escalação de protagonistas femininas em suas animações, mas em Nausicäa a existência de uma protagonista feminina não fora suficiente. Hayao desejaria mais. É atribuido ao diretor a citação: “Em muitos de meus filmes há uma personagem feminina forte – corajosa e independente, que não pensa duas vezes antes de fazer o que acredita ser o correto. Ela precisará de um amigo, de um auxiliar, mas nunca de um salvador. Qualquer mulher é tão capaz de ser um herói quanto um homem”.
Nausicaä (aqui me refiro à personagem) passa por todos os estágios do monomito (a chamada jornada do herói, cuja origem teórica do termo ocorre com o antropólogo Joseph Campbell, e a transposição das ideias de Campbell para a narrativa – em especial à cinematografia – acontece, acredita-se, com Christopher Vogler, roteirista-chefe da Walt Disney nos anos 1990), exceto àqueles que, de certa forma, diminuem o herói. Nausicaä em momento algum hesita em encarar os desafios que lhes são propostos (pelo contrário, ela é criticada pelos seus pares por ser inconsequente demais). A princesa do Vale do Vento enfrenta, é verdade, um breve momento de resignação a respeito de seus próprios limites emocionais, mas essa inconsistência é fruto de sua bondade e leadade para com seu povo, e não de um temor.
Esse engrandecimento da princesa Nausicaä ocorre, acreditamos, para que o filme se ocupe em equilibrar as forças temáticas concernentes ao herói – geralmente encarnado por uma figura imponente e masculina. Não por acaso Nausicaä é um filme essencialmente feminino – não só protagonista e antagonista são mulheres, mas efetivamente quase todos os personagens cujas ações redirecionam a história são do sexo feminino. Uma ilustração clara das intenções, podemos dizer revisionistas, de Miyazaki nesse sentido está na parte da história em que os pejitianos prendem a princesa Nausicaä dentro de sua nave a fim de darem cabo a seus planos de destruição. A princesa é resgatada pelas mulheres de Pejite, que em grupo deliberam, decindindo trair seus patriarcas, porque acreditam nas intenções da princesa.
O recurso dramaturgico milenar “donzela em perigo” é subvertido repetidas vezes em Nausicäa – como se a história constantemente se forçasse a colocar homens das mais variadas classes em perigo, apenas para que a princesa Nausicaä pudesse resgatá-los. A repetição desses recursos direciona a percepção do espectador para as intenções de gênero de Miyazaki, que ressoam em menores graus em sua filmografia. Nausicaä é o herói ideal do diretor, tanto em termos comportamentais quanto na ideia de que esse herói pode – e deve! - ser mulher.
O legado do filme é difícil de ser mensurado. Filmes como Divergente ou Jogos Vorazes guardam algumas proporções com o de Miyazaki, não sendo totalmente absurdo que tenham-no usado como inspiração. Referências ocidentais, inclusive, foram usadas pelo diretor japonês para construir sua história (como Duna, Superman e Senhor dos Anéis), que inicialmente foi lançada como um mangá e dois anos depois como filme. Embora o estúdio Ghibli tenha sido fundado em 1985 (Laputa: O Castelo no Céu é oficialmente resguardado como o primeiro lançamento), o bom senso nos diz que Nausicaä já é praticamente um filme com o selo da lendária produtora japonesa.
Mesmo que esse texto tenha se focado em aspectos temáticos e narrativos, os atributos cinematográficos e técnicos do filme também impressionam. A animação é absolutamente irrepreensível, falhando totalmente em evidenciar que o filme foi desenhado e pintado há mais de 30 anos atrás. A trilha-sonora com arranjos eletrônicos graves, por outro lado, marca inconfundivelmente o oitenticismo do filme, da maneira mais positiva possível. A história é repleta de cenas de candura, de ação e tristeza. A história não corre e o desfecho é dotado de uma imensa emoção. Nausicaä é espetacular e amplamente reconhecido pelos seus aspectos positivos. A ausência de menções mais enfáticas pelos foruns e blogs afora deixam, porém, a nítida impressão de que o filme é bastante subestimado.